terça-feira, 10 de maio de 2011

Vapor

Uma alma que não quer mais. Uma alma presa por um corpo à uma realidade que não quer mais.


Faz menos de um ano, perdi um tio muito querido. Isso foi dolorido e traumático para toda a família. Mas é certo que ninguém sofreu mais que minha avozinha em seus 80 anos de idade. Tão meiga e tão frágil, minha avozinha vinha sofrendo com essa separação. De tempos em tempos comentava com tristeza o fato de não poder mais ter seus dez filhos reunidos nas festas de família ou por nunca mais ter podido reunir todos no dia das mães.


Todos os meses, chegando o dia do aniversário da falta de meu tio, minha avozinha tinha febres que aos poucos iam abalando sua já fragilizada saúde. Próximo do aniversário de um ano de sua partida, ela teve uma febre forte e repentina, foi internada no UTI e ficou inconsciente por força de sedativos enquanto tentávamos insistentemente e a base de noradrnalina fazer bater seu coração. Havia esperança de que ela acordasse novamente, mas, um mês depois, um dia antes do dia das mães, esse coração tristonho afirmou mais uma vez que não queria mais.


Foi dolorido em pleno dia das mães deitá-la no mesmo local onde quase um ano antes deitamos um filho seu. É dolorido pensar que pouco a pouco eles receberão todos os demais que ficaram. É preciso ser forte para não abater minha alma e não adoecer meu corpo. É preciso seguir. Cumprir o que preciso ser cumprido como fez minha avozinha que padeceu dessas mesmas dores de se separar definitivamente de avós e pais, embora fosse demais a dor de perder um filho, ao menos quando na sua idade já tão avançada.


Pode parecer metafísica a ideia de uma ligação tão intrínseca entre alma e corpo, mas ela é apenas física. Sabemos e aceitamos que um corpo doente deixa abatida a alma, mas temos dificuldades de entender como uma alma abatida pode adoecer um corpo. Minha avozinha está livre agora, livre de um corpo doente e limitado. É triste porque era por meio desse corpo que ela podia falar-me, foi esse corpo que me abraçou tantas vezes longamente em quase todos os meus vinte e cinco aniversários, e em todos os meus vinte e cinco natais, corpo que eu beijava sempre que chegava e sempre que partia. Essas demonstrações de afeto, verdadeiras comunicações, formas de mostrar como nosso vínculo afetivo nos fazia amarmos-nos reciprocamente, não podem mais. Fica a pergunta sobre se o fizemos o suficiente. Pergunta cruel. Resta-me apenas a consciência de que devo demonstrar todo meu amor e meu afeto pelas pessoas que estão. Abracei-me longamente com minha mãe, minha madrina e minhas tias. Que mais posso eu fazer? Dentro de meus limites, tentei manter cheia de café a garrafa térmica. Olhos vermelhos em torno da mesa, xícaras cheias de líquido preto do qual sobe um tênue e transparente vapor branco, como se fosse a metáfora do calor que perde um corpo enquanto uma alma ascende.


Temo pensar que a ligação entre alma e corpo seja forte a ponto de a primeira não poder existir sem o segundo. Mas não creio que seja assim. A existência não pode acabar. Existir é ser eterno, idealisticamente eterno. A morte, separação entre alma e corpo é separação entre nós e eles. Não é, não pode ser o fim da existência, é apenas o fim da coexistência. Como doeu em minha avó, como dói em mim. Como dói.